Pelo reconhecimento e legitimidade das epistemologias trans e não bináries na produção de conhecimento, no ativismo intelectual e no combate à transfobia
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Em 7 de novembro de 2023, uma carta se tornou pública posicionando-se contra os pronunciamentos e publicações do Prof. Richard Miskolci, renomado pesquisador no campo dos estudos queer no Brasil, assinada por diversas organizações (ANTRA, Centro de Pesquisa Transfeminista, FONATRANS, Forum Black Trans Brasil, ForumTTRJ, IBRAT, MUTHA e Rede Trans Brasil), ativistas e docentes trans e travestis de diferentes gerações e apontaram que as críticas que o referido professor faz em relação ao conceito de cisnormatividade contribuem, concretamente, para a reprodução da transfobia e do epistemicídio do pensamento trans.
Diversas notas de apoio foram elaboradas em defesa do professor e não nos cabe aqui questionar seu direito à expressão e à disseminação de suas ideias numa arena democrática, tampouco colocar em xeque sua liberdade de cátedra. Contudo, é preciso destacar que o conceito de cisnormatividade possui tanto bases políticas quanto científicas e já tem sido pensado e problematizado, desde os anos 1990, sobretudo por ativistas trans.
O termo surge com o intuito de demonstrar que pessoas que se identificam com o suposto sexo designado ao nascer também podem ser marcadas por uma categoria, “cis”, demonstrando que tanto trans quanto cis são identidades construídas histórica e socialmente e que ambas devem ser consideradas para dar legitimidade a existências que possuem a coragem e o desejo em realizar transições de gênero, que não são mecânicas nem homogêneas.
Assim como foi necessário mostrar que a branquitude é um sistema de opressão que reproduz inúmeras formas de racismo e contribui para o genocídio da população negra, a cisnormatividade, como o par da branquitude, possibilita analisar e compreender que a transfobia se constitui como um cistema de opressão que hierarquiza, oprime, invisibiliza e aniquila pessoas trans (o tal do cissexismo), suas experiências e toda a produção de conhecimento que passa pelos saberes das esquinas, das encruzilhadas e do pajubá, dos movimentos trans, das políticas públicas, das representações no campo do executivo e do legislativo, das universidades, etc.
A cisgeneridade não é um conceito que se opõe mecanicamente à transgeneridade. Mais do que isso, apresenta-se como um modo de dar nome a um sistema normativo que controla modos de pensamento e de existência, que produz ideias de “verdade”, “legitimidade” e “normalidade” e que classifica pessoas e subjetividades como “impossíveis”, “falsas”, “anormais” e “ilegítimas”. Esta reflexão dialoga diretamente, inclusive, com a produção levada a cabo pelos estudos queer.
No Brasil, as categorias cisgeneridade e cisnormatividade passraram a ser disseminadas há mais ou menos 10 anos, por jovens ativistas a época como Hailey Kaas e Bia Bagagli, fundadoras do blog transfeminismo e precursoras de trazer para o debate feminista o protagonismo de mulheres trans e travestis, apontando a importância de falarmos em cisnormatividades que atravessam inclusive o campo LGBTQIAPN+ e o campo de estudos queer, de gênero e de sexualidade. Nesses últimos dez anos, tem sido notável o crescimento de produções autorais, dissertações e teses elaboradas por pessoas trans, em diferentes áreas de conhecimento, nas quais, inclusive, os conceitos de cisgeneridade e cisnormatividade têm sido pensados e problematizados.
Nas universidades brasileiras, apesar dos estudos queer e dos estudos de gênero e de sexualidade serem campos constituídos e respeitados, a produção de conhecimento elaborada por intelectuais trans tem tido pouco reconhecimento acadêmico. Não podemos negar que isso se deve tanto à manutenção de um pensamento binário (que dizem combater) e cisnormativo, que atravessa as instituições e, para além disso, de uma reprodução da branquitude. E isso, por exemplo, tem impedido de incluir nas políticas de ações afirmativas reserva de vagas para pessoas trans para o ingresso nas universidades públicas. E também um descaso generalizado em relação à força mobilizadora das epistemologias trans para a transformação social na educação, na economia, no direito, na política etc.
Nesse cenário, a não binariedade não pode ser compreendida como um fenômeno neo-liberal que resulta de um modismo de políticas identitárias. É tanto uma expressão de gênero genuína, que não é única nem nova, quanto um pensamento divergente que cresce nas bordas de um cistema que não consegue enxergá-las como possibilidade de corpos-pessoas-pensamentos que não querem (ou não podem) ser enquadrades.
E acreditando na força do diálogo, mas também da divergência e dos trânsitos entre corpas, saberes e ideias, manifestamos nosso apoio a organizações, pensadoras e ativistas trans que têm colaborado para incomodar as (in)certezas de uma univercisdade que precisa rever seus modos de pensar e de reforçar estruturas de poder arcaicas e homogêneas. Que venha a era do traviarcado!
Assinam essa carta:
Corpas Trans na Universidade de São Paulo
Cóccix – Estudos indisciplinares do corpo e do território – USP
Inserto – Núcleo pela Diversidade de Gênero e Sexualidade – Unimontes
Ana Letícia de Fiori – Cóccix/USP e UFAC
Amanda Amparo – Cóccix/USP
Arthur Gomes – Cóccix/USP
Bruna Carvalho – Cóccix/USP
Eros Sester – Cóccix/USP
Floreny Fregone – Cóccix/USP
Gabrielle Weber – Corpas Trans USP
Heloíse Fruchi – Cóccix/USP
Julio Ferreira – Cóccix/USP
Lis Macedo de Barros – Corpas Trans/USP e UFABC
Lupe Lima Pugliesi – Corpas Trans/USP
Lux Lima – Cóccix/USP e Unicamp
Marcelo Brito – Inserto/Unimontes e Cóccix/USP
Mayara Santos – Cóccix/USP
Morgan Caetano – Cóccix/USP
Silvana Nascimento – Corpas T USP e Cóccix/USP
Simone Santos Pereira – Cóccix/USP
T. Angel – Corpas Trans/USP
Thiago Oliveira – Cóccix/USP
tita (Letizia Patriarca) – Cóccix/USP
Verônica Guerra – Cóccix/USP
William Moura – Cóccix/USP
Yann Gomes dos Santos – Cóccix/USP